Breve História do Jiu Jitsu Brasileiro - Parte 1
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  • Foto do escritorGustavo Goulart

Breve História do Jiu Jitsu Brasileiro - Parte 1

Atualizado: 22 de out. de 2019

A palavra jiujitsu (ou jujutsu, usando o sistema hepburn de romanização) não é o nome de uma única arte marcial japonesa; pelo contrário, é um termo genérico usado por várias tradições marciais (ryu) que se desenvolveram ao longo de muitos séculos no Japão. Em 1882, Jigoro Kano, depois de estudar duas escolas diferentes dessa arte, Tenjin Shinyo-ryu e Kito-ryu, fundou seu próprio dojo chamado Kodokan. Através dessa amálgama de conhecimento de diferentes escolas, ele criou o que hoje é conhecido como judô.

"Ao contrário do que se acredita popularmente no Ocidente, o termo judô não foi inventado por Kano Jigoro, como já era usado em 1724 por Inoue Jibudayu, do Jikishin-ryu, e possivelmente antes mesmo por outros expoentes do jujutsu. Os livros do período Meiji costumam usar o termo judô como sinônimo de jujutsu, referindo-se a certas escolas de jujutsu como escolas de judô. No entanto, esse uso provavelmente ocorreu apenas depois que o termo foi popularizado por Kano. Portanto, ao me referir ao judô de Kano Jigoro, prefiro usar o nome dado pela fonte espiritual da disciplina - ou seja, Kodokan Judo. O judô de Kano às vezes também era chamado de "Kano Jujutsu" ou "Kano-ryu Jujutsu". O sistema que ele originalmente inventou, derivando-o de várias fontes (duas das principais sendo Kito-ryu e Tenjin Shinyo-ryu), ainda era muito perto do jujutsu do período Edo, e completamente diferente do que vemos agora nas competições modernas de judô." -Serge Mol, Classical Fighting Arts of Japan

No início de 1900, quando muitos artistas marciais começaram a emigrar do Japão para o Ocidente, as palavras judô e jiujitsu eram intercambiáveis. Não havia uma distinção exata entre os dois termos fora do Japão, e a diferença entre judô e o clássico jujutsu antigo era pouco compreendida, mesmo para os japoneses. Deve-se a esse fator o desenvolvimento do judô com o nome de jiujitsu em muitos continentes.

Um dos mais importantes judoka que levaram a arte para fora do Japão foi Maeda Mitsuyo. Maeda, a fonte do jiujitsu brasileiro, nasceu em 1878. Ele competiu no sumô em sua juventude e se matriculou no Kodokan em 1897. É importante lembrar que Maeda já havia iniciado sua jornada no judô através da Universidade de Waseda anteriormente ao seu ingresso no Kodokan. Maeda ascendeu ao terceiro dan em 1901 e começou a ensinar judô no Gakushuin Escola de Cadetes do Exército), bem como outras instituições. E rapidamente se distinguiu dentro do Kodokan como um de seus principais expoentes. Isso é demonstrado pelo fato de que os quatro principais discípulos instruídos diretamente por Jigoro Kano eram chamados Kodokan Shitenno (Quatro Guardiões dos Kodokan) enquanto Maeda ficou conhecido como um dos Kodokan Sanba Garasu (Três Pilares dos Kodokan), junto com Todoroki Shota e Samura Kaichiro, líderes de sua geração.


Tomita Tsunejiro 6o Dan, Maeda Mitsuyo 4o Dan

Após deixar o Japão em 1904, Maeda teve que se adaptar aos anseios da cultura ocidental. Diferente do Japão, onde os desafios do judô contra o jujutsu diminuíram o interesse pelo último, o Ocidente estava ansioso para entender as artes marciais japonesas como uma forma de combate. O principal empregador de artistas marciais japoneses era a polícia e o exército, e não haviam torneios de judô com as regras praticadas no Japão. Maeda teve que lutar em competições muito diferentes das do Kodokan para provar a eficiência da arte marcial japonesa. Como os ocidentais não estavam acostumados à forma cerimonial de Kata praticada pelos japoneses, as técnicas eram ensinadas de maneira menos estruturada. À medida que os "truques de autodefesa do jujutsu" se tornaram populares, muitos livros foram publicados nos quais é difícil distinguir de qual ryu (estilo) cada técnica poderia ter sido adotada. Ao observarmos o livro publicado por Maeda, por exemplo, é interessante reparar que, a primeira metade compõe-se de técnicas em roupas ocidentais, enquanto a segunda metade com o Judogi japonês. Essa é uma das indicações de que Maeda não ensinava defesa pessoal somente na forma dos katas estipulados pelo Kodokan. Certamente, havia muitos judocas que tiveram suas próprias idéias sobre o que deveria ser o judô depois que o Kodokan foi criado. Alguns até mesmo criaram seu próprio conjunto de Kata. Isto não foi uma excepcionalidade que ocorrera somente com Maeda e seus contemporâneos desbravando os países estrangeiros.

Além disso, os lutadores de judô no ocidente também tiveram que se adaptar para lutar contra outros estilos de luta, como “catch as catch can”, isto também afetou o método pelo qual o judô seria ensinado, pois no Ocidente os alunos estavam principalmente interessados no aspecto da luta. Em outras palavras, os ocidentais queriam aprender aquilo que seu professor utilizara para derrotar os adversários nas lutas de ringue. Sem o rígido controle de Kano e do Kodokan fora do Japão, os instrutores japoneses tinham toda a liberdade necessária para criar seus próprios métodos de ensino.


Maeda Mitsuyo e Ono Akitaro, Subtitle: Catch as Catch Can Ryu (カッチアズ、カッチカン流) Shinjudo Musha Shugyo: Sekai Okou Dai Ni, Maeda Mitsuyo, Usuda Zan’un, 1912

"O primeiro contato que o Ocidente teve com o jujutsu - além do marinheiro ocasional que recebeu uma demonstração por alguma transgressão cometida enquanto estava de licença em um porto japonês, ou dos diplomatas, jornalistas e aventureiros que moravam no japão pouco antes da restauração Meiji e tiveram a oportunidade de ver o jujutsu realizado como parte das cerimônias oficiais do governo - se deu graças aos expatriados japoneses trabalhando no exterior no final do século XIX e início do século XX. Esses expatriados não eram de forma alguma os 'mestres' do jujutsu, o seu conhecimento de jujutsu bastante limitado (embora fosse impressionante o suficiente para chamar a atenção do ocidental contemporâneo para o jujutsu) foi principalmente emprestado de sistemas como o Tenjin Shinyo Ryu, o Yoshin Ryu, e, claro, o judô de Kano Jigoro (um produto do período Meiji)." -Serge Mol, Classical Fighting Arts of Japan

Para entender como era o jiujitsu brasileiro no começo, podemos compará-lo com muitas outras escolas de judô ou jujutsu criadas na mesma época no Ocidente. O "movimento do jiujitsu" aconteceu em escala global, verificado por muitos livros publicados em todo o mundo, usando nomes como judô, jiujitsu, jujutsu ou jujitsu. O Budokwai, de Londres, com o método de defesa pessoal de Gunji Koizumi de 1949 representa isso muito bem, pois os movimentos de autodefesa do Budokwai Goshinjutsu se assemelham de várias maneiras ao método de autodefesa ensinado pelos Gracies( desde os primeiros tempos até agora). Não é de se espantar esta semelhança ao sabermos que Maeda conheceu os professores de Jujutsu que deram origem à Budokwai e, não somente isso, Sadakazu Uyenishi (também conhecido como Raku) chegou ao Brasil na trupe de Maeda. O jiujitsu inglês, que deu origem à escola Budokwai, tinha um modelo muito semelhante ao início do jiujitsu brasileiro e, isto talvez não se deva somente ao acaso.


Yukio Tani e Sadakazu Uyenishi

Maeda tem um papel de destaque no desenvolvimento do jiujitsu no Brasil, não apenas por supostamente ser o primeiro professor de Carlos Gracie, mas também porque as duas principais linhas de jiujitsu que ainda sobrevivem no Brasil (Fadda e Gracie) estão ligadas de alguma maneira a ele.

Maeda chegou ao Brasil em novembro de 1914, junto com outros judocas conhecidos como Uyenishi Sadakazu (Raku), e Satake. Na chegada, todos os membros daquela pequena comitiva lutaram em território brasileiro, eles e outros japoneses continuariam a realizar desafios por mais de uma década e meia. Somente no início da década de 1930, porém, as escolas de jiujitsu começaram a atrair mais atenção da população em geral, em oposição apenas ao circuito profissional de luta e, principalmente, na capital, Rio de Janeiro.

"É instrutor de jiu jitsu de nossa polícia civil - a primeira organização policial brasileira que adoptou esse methodo de defesa - o Sr. Carlos Gracie, um jovem paraense, que desde março do anno passado exerce taes funções." –Diário Nacional 1929

Uma das primeiras aparições de Carlos Gracie por um jornal brasileiro sobre o Jiujitsu ocorre em 1929, onde ele fala sobre seu recrutamento pela polícia de Minas Gerais. Assim Carlos explica sua ascensão no esporte:

"Aprendi Jiujitsu em minha cidade natal, Pará, onde passou uma troupe japoneza da qual fazia parte o famoso conde Maeda Koma, instructor da Escola Imperial do Japão". Este Maeda Koma, que foi o mestre do sr. Carlos Gracie, esteve em Bello Horizonte ha annos, provavelmente com a mesma troupe, e por signal que conduziu uma interessante e inesperada demonstração de sua força e agilidade no salão do antigo Cinema Comércio. –Diário Nacional 1929

Em 1930, depois de lutar com Geo Omori, um lutador japonês já bem conhecido do público brasileiro, Carlos tornou-se instrutor da Academia de jiujitsu do Rio (mais tarde, Academia Gracie), fundada por Donato Pires dos Reis. Donato havia trazido Carlos para trabalhar como assistente na polícia de Minas Gerais. Ele também era um ex-aluno de Maeda no Pará e afirmava, anos depois, que Carlos nunca conhecera Maeda. Donato dizia também que era um dos poucos indivíduos reconhecidos pelo mestre como instrutor, como evidenciado por um diploma que ele mostrou aos jornalistas.

Quaisquer que sejam os méritos de sua reivindicação, Carlos dificilmente poderia ter sido um aluno direto de Maeda por muito tempo. De acordo com a conta mais usual, Carlos iniciou seu aprendizado aos 14 anos. Naquela época, porém, Maeda não estava totalmente estabelecido no Brasil; nesta época viajou diversas vezes dentro e para fora do país. Quando ele finalmente se estabeleceu, os Gracies já haviam se mudado de Belém do Pará. Muitos alunos da academia de Maeda nesta época, devem seus ensinamentos a Jacyntho Ferro, instrutor da academia. Outra questão é que nesta época Maeda se envolve em ajudar o estabelecimento de imigrantes japoneses, o que diminuíra sua atuação como professor.


Temos ainda um relato quase contemporâneo que é contrário ao mito padrão de nascimento do jiujitsu brasileiro: de acordo com José Brigido no jornal Diario de Notícias em 1932, os irmãos Gracie aprenderam jiujitsu com Donato Pires.

Aquilo que Carlos aprendera na academia de Maeda, teria se dado por um curto espaço de tempo, e possivelmente teria tido aulas em sua maioria com Jacyntho Ferro, o instrutor da escola. Carlos teve tempo suficiente estudando na academia de Maeda para ter aprendido o suficiente para ensinar todos os seus irmãos e transformá-los em lutadores? Ele continuou a adquirir conhecimento por outros meios? Quaisquer que fossem os fatos, Maeda era muito popular no Brasil, considerado o maior mestre de jiujitsu do país, e estar conectado a ele de qualquer forma dava credibilidade a qualquer um.


Carlos começou a chamar a atenção das pessoas como instrutor de jiujitsu após sua luta contra Geo Omori. Segundo relatos de Geo Omori, o jovem Gracie não sabia nada além de truques de autodefesa antes dos dois se conhecerem. George Gracie faria uma declaração mais tarde de que também estudou com Omori, pois Carlos conhecia apenas as formas de autodefesa. Geo Omori aparentemente ensinou a Carlos o 'jiujitsu para o ringue'. Se Omori ensinou Carlos como professor, ou o fez de maneira mais informal, tais trocas entre lutadores de jiujitsu eram frequentes e comuns naquela época, não apenas entre os Gracies, mas também entre os japoneses que se tornaram reconhecidos nesse período como lutadores.


Houveram também muitas trocas entre lutadores de jiujitsu e lutadores da luta livre ao longo da história. O intercâmbio técnico era imprescindível para quem queria permanecer relevante em cima do ringue. Carlos, no entanto, estava também focado em tentar constituir a família como pioneira do jiujitsu no Brasil; portanto, tentou manter a aparência de uma certa distância de influências externas em seu próprio jiujitsu. Os irmãos Oswaldo e George, por outro lado, treinavam livremente com muitos lutadores diferentes, sem esconder isso de nenhuma forma. Em 1932, Orlando Americo da Silva, também conhecido como Dudu, auxiliou no treinamento de George Gracie para combater Fred Ebert. Dudú também havia feito sessões de treinamento com os demais Gracies na Marquez de Abrantes. Em janeiro de 1933, durante uma sessão de treinamento na Academia Gracie, Dudu quebrou a perna de Oswaldo Gracie em três partes. George mais tarde ainda viria a lutar contra Dudú no ringue.

"Agradeço sinceramente o grande interesse de meu irmão Carlos, quando se manifesta temendo pelo meu primeiro revés, mas afianço-lhe que tal não acontecerá, pois saberei corresponder a confiança daquelles que me conhecem de perto. Quando saí do Rio, já me encontrava em grande forma e agora attingi a minha melhor phase e isso graças à dedicação do meu principal treinador Dudu." -George Gracie no Jornal dos Sports, 1932

Ao Centro, Euclydes Hatem (Tatu) famoso representante da luta livre. À direita, Oswaldo Gracie.

Em 1939, adquirindo independência de seu irmão, George Gracie se une a Donato Pires para abrir uma nova academia no Rio de Janeiro. Para dar ainda mais credibilidade à hipótese de que Carlos e Donato podem ter aprendido apenas autodefesa na escola de Maeda e a lutar no ringue com Omori, nesta nova academia Donato era responsável apenas pelo currículo de autodefesa, enquanto George ensinava o jiujitsu para o ringue. Este empreendimento, entretanto, não durou muito, pois George estava mais interessado em lutar do que em ensinar. Talvez seja por isso que os afiliados de Carlos e Hélio se tornaram mais difundidos em todo o Brasil hoje, enquanto a linhagem de George no jiujitsu está praticamente perdida. Os irmãos Carlos e Helio se preocuparam à todo tempo em desenvolverem-se não somente como lutadores, mas também como professores e donos de uma academia de sucesso.


Hélio começou a fazer parte da academia de jiujitsu em 1931. Ao buscarem a independência de Carlos, seus outros irmãos decidiram deixar a academia e montar seus próprios negócios. Como Carlos assumiu o papel de gerente da Academia Gracie, Hélio se tornou o instrutor principal e o principal lutador. Mesmo assim, seria comum que todos os irmãos se unissem para treinar sempre que houvesse necessidade, principalmente antes das lutas.


Chama atenção que, em 1937, os maiores nomes do jiujitsu na mídia disputando o título de campeão do jiujitsu eram Helio e George Gracie, Geo Omori, Yano Takeo, e os irmãos Ono. Estes japoneses todos treinados no método de judô da Kodokan, ainda que proviessem da Dai Nippon Butokukai. Na verdade, havia muito mais representantes do judô, em locais como São Paulo, por exemplo, que no Rio de Janeiro (onde viviam os Gracie) no entanto eles treinavam principalmente dentro da comunidade japonesa. Os japoneses tendiam a formar comunidades fechadas com pouca comunicação com as pessoas de fora, algo que o governo brasileiro acabaria vendo como um problema. Isto se deu principalmente à medida em que a população japonesa no Brasil aumentava e, em vez de tentar interagir com os locais, decidiam formar o que se pareceria com cidades japonesas dentro do território nacional.



Linhagem do Jiu Jitsu Brasileiro (desenvolvido por Christiano Martins Milfont)

Em 1938, Helio Gracie e George Gracie disputaram na mídia o título de melhor lutador de jiujitsu. George havia sido o treinador principal de muitas das lutas de Helio, além de seu parceiro de treinos e irmão, e nesta época a imprensa pressionava os dois a decidir quem era afinal o melhor em uma luta. Membros da mesma família, no entanto, nunca viriam a lutar um contra o outro. Quando George foi aos jornais, dizendo que a disputa tinha que acontecer, os dois irmãos ficaram mais distantes. Hélio decidiu se aposentar porque, segundo ele, não conseguia mais encontrar oponentes dignos. A aposentadoria de Hélio durou quase dez anos. Durante este tempo, no entanto, George continuou lutando e fazendo seu nome no circuito de lutas.



*continua no post da próxima semana

ありがとうございました。

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